Quando as minas foram abandonadas, as pessoas também foram.
14.05.2007, Carlos Pessoa
Muitos dos antigos funcionários da exploraçãode urânio da Urgeiriça apresentam cancros e outras patologias graves ou morreram prematuramente.
Depois de atravessar Nelas, a sinalização aponta o caminho para o Hotel da Urgeiriça em todos os cruzamentos. Alguns quilómetros mais à frente, na estrada para Coimbra, surge o desvio. Logo à direita, lá está a entrada principal do hotel, que mal se vislumbra ao fundo, atrás de uma cortina de vegetação.Mas não é isso o que mais chama a atenção. Um gigantesco aterro, situado quase em frente da mata do hotel, impõe a sua presença imponente e algo intimidante. São toneladas e toneladas de terra, rodeadas por uma vedação provisória, a sugerir que a obra ainda está em curso.
Quem é da terra sabe que aquela brutal cicatriz no tecido verdejante da zona esconde as escórias da antiga laboração da mina de urânio da Urgeiriça. É a Barragem Velha, finalmente intervencionada (ver texto sobre requalificação ambiental) depois de décadas a acumular materiais radioactivos. Como cartão-de-visita dapovoação dificilmente poderia ser pior, mas quem tem culpa de ter havido ali jazidas de urânio?Não muito longe, do lado de lá da linha férrea da Beira Alta, que corta o acesso às instalações fabris, está o antigo complexo mineiro da Empresa Nacional de Urânio (extinta em 2004), parado desde o princípio dos anos 90.
Como em todas as áreas industri-ais antigas, os edifícios são feios. Mas aqui, o que pesa é o estado deabandono, mal disfarçado pela ocu-pação parcial de alguns imóveis compequenos negócios, oficinas e escritórios.
À distância de algumas centenas de metros ergue-se uma correnteza de apartamentos. E por trás destes há um campo de futebol impraticável, e a seguir o bairro operário, construído para abrigar os malteses, esses trabalhadores de outros tempos que vinham de longe para trabalhar no urânio.Morrer aos 50 anosNum extremo da urbanização, a casa de pessoal dos trabalhadores das minas continua a funcionar. É frequentada pelos residentes do bairro, muitos deles já sem qualquer ligação à história recente das minas. Com um bar, sala de convívio e salão, é o último vestígio vivo de um tempo em que a actividade extractiva pautava a vida quotidiana na Urgeiriça, Canas de Senhorim e outras povoações da região. Quando as minas fecharam, cada um foi à sua vida. Os mais velhos passaram à reforma, os outros encontraram novo emprego ou ficaram mesmo desempregados.
Ao contrário do que seria normal, não se virou uma nova página na existência de todos eles. Algo ficou para trás e tem a mesma natureza de uma bomba-relógio, deflagrando de forma imprevista e causando dor, sofrimento e, por fim, morte.Os testemunhos falam por si. Como o de Bernardo da Cruz, de 64 anos, antigo fiel de armazém durante 27 anos: aos 58 anos foi-lhe diagnosticado um cancro na garganta e hoje só muito dificilmente consegue falar. Ou o de Vítor Morais, de 52 anos, trabalhador no tratamento do minério e depois no sector administrativo, a quem foi descoberto em 2005 (14 anos depois de ter saído da empresa) um cancro na tiróide.António Loureiro, de 55 anos, desenhador até 1993, teve mais sorte ("até ver", ressalva); queixa-se de proble-mas ósseos mas o resto está bem. O mesmo acontece com António Figueiredo, de 60 anos, hoje desempregado, que trabalhou no transporte do minério.Estes homens não contam apenas as suas histórias.
Evocam também a memória dos que tinham idades próximas e já morreram, e ainda aqueles que estão doentes: Ana Paula, mulher de Vítor Morais, ou a "colega Adélia", ambas com problemas na tiróide; José Teixeira, compadre de António Figueiredo, morto aos 50 anos com "os pulmões desfeitos"; José Alvadia, desenhador que morreu com cancro... Os nomes sucedem-se, incluindo engenheiros, secretárias, pessoal administrativo, dos recursos humanos, mais mineiros.
Falta de informaçãoTodos falam das más condições de trabalho, da falta de informação quan-to aos perigos do minério, dos equipamentos de protecção sumários e dos exames médicos elementares, realidades do passado que é hoje impossível emendar. Mas não seria ainda possível fazer algo por eles no presente?"Sabe-se que há maior incidência de cancros do pulmão nos mineiros, sendo de esperar o aparecimento de mais patologias nessa população", diz Eugénio Cordeiro, um dos coordenadores do projecto MiNurar (estudo dos efeitos das minas de urânio na saúde da população) e assessor na Administração Regional de Saúde do Centro. A monitorização deve ser assegurada pela medicina ocupacional da empresa, acrescenta. "Mas como nes-te caso ela já não existe, deveria ser o Estado a assumir tal função.
" Este especialista em epidemiologia é de opinião que os exames e rastreios a efectuar não "são muito especiais, nem sequer em termos de frequência", admitindo que não representariam um encargo suplementar exagerado. Em Dezembro de 2006, o deputado social-democrata António Almeida Henriques perguntou ao Ministério da Saúde que medidas tinham sido tomadas para "se iniciarem os exames médicos aos 300 ex-trabalhadores da ENU". Ainda não teve resposta e a assessora de imprensa do ministro Correia de Campos disse ao PÚBLICO que a Direcção-Geral de Saúde estava à espera da divulgação dos resultados finais do projecto MiNurar para avançar com exames aos antigos tra-balhadores.
http://jornal.publico.clix.pt/default.asp?url=%2Fmain%2Easp%3Fid%3D11327752
maio 14, 2007
A Urgeiriça...no "Público PT"
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