O portal de Canas de Senhorim

outubro 22, 2008

António Minhoto...retrato

António é o rosto dos antigos trabalhadores do urânio Às sete da manhã, uma hora mais tarde na época baixa, o dia está a começar para António Minhoto. Em poucos minutos percorre de carro os escassos quilómetros que separam a sua casa, à saída de Nelas, do Quiosque Sombrinha, um café-pastelaria nas termas de Caldas da Felgueira.

O caminho é sempre a descer até à margem da ribeira do Pantanha, a um pulo do Mondego, muitas vezes mergulhada em espesso nevoeiro. Mas isso pouco lhe importa, pois Minhoto não é homem para se preocupar com detalhes. São muitas as horas do seu dia de trabalho, preenchidas a atender clientes e a gerir o negócio, que explora desde 1990 com a mulher. "Foi a única saída que encontrei depois de ter sido obrigado a aceitar o despedimento da Empresa Nacional de Urânio [ENU] em 1989. É o meu ganha-pão para sustentar a família com menos dificuldades", explica.

Nada do que ficou dito o distingue especialmente de tantos outros pequenos empresários. Mas António Minhoto, de 56 anos, nascido em Nelas, casado e pai de duas filhas já adultas, é um empresário diferente. Começou a trabalhar muito cedo, foi a maior parte da vida um "trabalhador indiferenciado" - a expressão é sua - e é hoje um homem bem-sucedido com uma actividade absorvente.
No entanto, isso não o faz esquecer a situação dos antigos companheiros de trabalho na mineração. Ele tem sido o rosto mais visível de uma luta que travam há vários anos para ver reconhecidos direitos que consideram legítimos e um acompanhamento médico permanente - esta reivindicação já foi atendida pelo Ministério da Saúde -, a par da exigência de recuperação ambiental de todas as minas abandonadas quando a exploração de urânio terminou em Portugal.

Um homem de causas

O último episódio deste processo, a que António Minhoto se tem dedicado incansavelmente, decorre hoje em Nisa, onde a Comissão de ex-Trabalhadores da ENU promove uma tribuna cívica para "julgar" as consequências da exploração de urânio em Portugal.

A intervenção cívica ocupa um lugar relevante no currículo de António Minhoto, que se define como "um homem de causas". Fez parte da Comissão de Trabalhadores da ENU e foi delegado sindical, integrou a comissão de segurança da empresa e foi presidente da respectiva casa de pessoal. Envolveu-se na causa pela criação do concelho de Canas de Senhorim e esteve ao lado dos que se opuseram ao encerramento do Centro de Saúde de Nelas. Depois do 25 de Abril, militou na UDP e no Bloco de Esquerda. Hoje diz-se partidariamente descomprometido.

Já depois do encerramento da ENU, cria em 2002 a associação Ambiente em Zonas Uraníferas. A partir dessa data a intervenção do antigo trabalhador do urânio torna-se mais sistemática e persistente, trazendo para as páginas dos jornais e ecrãs das televisões a realidade complexa, e por vezes dramática, dos ex-camaradas.

A combatividade de que Minhoto dá provas na intervenção cívica manifestou-se muito cedo na sua vida. Filho de uma numerosa família - oito irmãos - de trabalhadores rurais muito pobres, teve de começar aos 12 anos a ajudar os seus. "O meu primeiro emprego foi numa empresa vinícola de Nelas. Ganhava 35 escudos por mês [cerca de 18 cêntimos de euro] a acartar madeira às costas. Os meus problemas de coluna começaram aí", recorda.
"Como uma facada"

António Minhoto foi ganhar mais dez escudos noutra empresa de vinhos, mas continuou a engraxar sapatos junto à Pensão Mangas, em Nelas. Em 1971 trocou tudo isso pelas Minas da Panasqueira. Resistiu um ano a viver em camarata e mudou de cenário - deste vez a Linha do Oeste, onde participou nos trabalhos de limpeza de via.

Aos 20 anos vem a tropa e o conhecimento dos que contribuíram para a sua politização. Só o pedido insistente da mãe o impediu de desertar, acabando com a especialidade de motorista em Luanda, onde assiste à queda do regime salazarista-caetanista em 1974. Entra para os quadros da ENU em 1976, onde faz de tudo nos 13 anos seguintes.

A saída da empresa foi difícil. "Nos primeiros anos nem conseguia vir aqui", diz com um gesto largo para designar o local de trabalho na Urgeiriça, a casa no bairro operário onde viveu nove anos, a antiga cantina, a casa do pessoal. "Chocava-me ver as coisas degradarem-se, era como uma facada. Agora já estou vacinado".

O seu percurso não deixa ninguém indiferente. Os que não partilham as suas ideias reconhecem-lhe as qualidades de "lutador". É essa a opinião de Luís Ribeiro, membro da Comissão Concelhia de Nelas do PSD.

Adelino Borges, presidente da concelhia socialista, reconhece ter "alguma admiração e amizade" por ele: "A sua qualidade mais positiva é o espírito de militância e a forma como defende as suas opiniões." Francisco Paula, administrador de uma cadeia local de supermercados, conhece Minhoto há 30 anos: "Admiro a sua persistência e a capacidade de mobilização dos colegas e dos media."

Os que lhe estão próximos não poupam elogios. Joaquim Silva, administrador de uma empresa comercial, andou com Minhoto na escola: "Fez um grande trabalho no concelho e se o pessoal da Urgeiriça tem alguma coisa é porque ele trabalhou para isso." João Marques, segundo-comandante dos bombeiros de Canas de Senhorim e antigo trabalhador da ENU, recorda um episódio elucidativo da sua coragem e capacidade de liderança: "Alguém tentou furar uma greve e o Minhoto desligou a máquina. Foi punido com 15 dias de suspensão e muitos trabalhadores quotizaram-se para lhe pagar os dias de salário."

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Texto de (excertos) - Carlos Pessoa Jornal Público (19-10-2008)
Reportagem fotográfica - efeneto

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