O portal de Canas de Senhorim

maio 11, 2007

...na boca dos poetas.

Onde a mulher teve um amor feliz é a sua terra.

Lembro-me, no norte de Angola, de ver uma jibóia e uma cabra mortas. A metade da frente da cabra estava dentro da jibóia, a metade de trás, a garupa e as patas, de fora, e a jibóia falecera engasgada. Lembro-me de um rapaz de tripas ao léu, atacado por uma pacaça, de outro a quem um crocodilo roubou o tornozelo e eu às voltas com o coto a sangrar. Lembro-me de centenas de mandris num morro. Lembro-me, no Leste, de uma manadazita de elefantes trotando sob a avioneta. Lembro-me sobretudo dos cheiros e da permanente exaltação dos sentidos. Da sombra da avioneta perseguindo os elefantes. Da estranha, inexplicável, genuína alegria que acompanha a crueldade e a violência. Acho que, depois disso, me tornei comedido, pacífico. O corpo, que tanto maltrato, lá continua para diante e eu com ele. Estou a escrever um romance, comecei-o no dia 15 de junho, e escrevo às cegas, caminhando numa espécie de nevoeiro: há-de chegar o momento em que encontrarei, de súbito, uma clareira iluminada e então compreenderei tudo. Voltei, anteontem, da serra da Estrela, ou seja de a poucos quilómetros da serra da Estrela, onde fui encher os olhos com a minha infância que segue naquelas árvores, naquelas pedras, no pinhal que já não existe e, no entanto, para mim permanece. Casas escuras por ali acima. E um bloco de saudade no lugar do estômago. Às vezes percebo mal no que me tornei. Se a minha avó aparecesse contar-me-ia histórias de comboios? A do cão, chamado Fido, posto na rua do inverno? Onde pára o sapateiro de Benfica que me prevenia

- O mundo é grande, menino

ou o doido, que vendia passarinhos, a esbracejar nas esquinas? As mulheres da adolescência, vestidas de roupa interior numa saleta de espelhos? Tornei-me em quê? Os rebanhos atravessavam a estrada, num suspiro. Andavam, trotavam uns metros, andavam de novo. Tenho vivido, até hoje, num assombro perpétuo. E tudo continua a empurrar-me para a vida.

Falo pouco. Quem me conhece sabe que falo pouco, escuto pouco, levo o tempo a pensar noutra coisa. Não em livros: os livros só existem quando os estou a escrever, saio e entro neles num desligar de fantasma. Pensar noutra coisa. Que palavra, pensar. Pensar é apenas ouvir com atenção. Oiço esta crónica: os seus movimentos. As frases que chegam como ondas. Vêm, ficam um bocadinho no papel, recuam, desaparecem. Há momentos em que é difícil apanhá-las. Quantos amigos tenho? Dois? Três? Não alcanço mais. Os olhos da jibóia redondos, abertos.

Hoje é sexta-feira, fim de agosto. Agrada-me este mês. Na Beira Alta chovia. Os hóspedes do hotel, de chinelos e calções, desocupados. Aceito a estupidez, a maldade, a mentira, custa-me mas aceito, não aceito as crianças que correm entre as mesas. Mães complacentes, pais de sandálias de filme bíblico. Não me concebo mulher, que mais não fosse pêlos pés, tão feios, dos homens, aqueles dedos todos a mexerem-se no fundo da cama. As conversas. Os olhinhos. As opiniões. Os dentes que lhes sobejam nos sorrisos. O gosto pêlos jornais. Quando acabar esta crónica volto ao romance. É-me impossível falar dele porque se faz sozinho, andei anos a treinar a mão para escrever sem mim. Eu em bicos de pés e a mão lá em cima, arrebanhando tudo o que apanha, pelo simples tacto, numa prateleira alta. O rapaz, atacado pela pacaça, nem uma careta, um som. A expressão dele opaca, impassível, nenhuma contracção dos músculos, nada que me permitisse adivinhar-lhe a dor. Depois do tratamento (tratamento!) os parentes levaram-no, de padiola, para uma aldeia distante. Jamais dei por tanto silêncio à minha roda como nesse dia. Os morcegos das mangueiras nem um grito. E eu, claro, não ia morrer nunca. O mais difícil é essa breve noite interior a meio da manhã, ganas de partir, de ficar, de furar a palma com as unhas e, logo a seguir, a esperança. Onde a mulher teve um amor feliz é a sua terra natal.

Acho que estou quase no fim, vou despedir-me. Que trabalheira sorrir, apertar mãos. Que trabalheira anoitecer, e que falta de dignidade a velhice e a doença. Óculos. Dificuldades nos ossos. Lentas misérias.

Quase no fim, disse eu. Subir para o quarto, sentar-me à mesa, fechar os olhos antes de começar. A serra da Estrela inteira à minha frente, luzes de Seia, de Gouveia, de outras terras. Da varanda dos meus avós o alumínio dos grilos raspando, raspando. Continuarão depois de mim, continuarão para sempre, eternos como as pedras.

Vi um cão cego, perplexo numa encruzilhada de caminhos, na Urgeiriça. Principiou a tremer ao sentir-me chegar,trazia um pedaço de corda no pescoço. Ficou no local onde, antigamente, as minas. Quem se rala com um cão? Quem se rala com uma cabra defunta ou um coto a sangrar? Glicínias, glicínias. Não quero o cheiro das glicínias, não quero as suas flores. Quero uma paz imensa. Agora.


António Lobo Antunes

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